Outra Cena #003 | Arestas estruturais

Mesa de trabalho de Sigmund Freud

arestas estruturais

Dentre as muitas contribuições da psicanálise ao entendimento da vida psíquica humana, a diferenciação entre o fato histórico e o valor psíquico das experiências, contadas sempre pela via da palavra, figura como um dos elementos de maior relevância. Nos trâmites entre resistência, recalque e conteúdo inconsciente, Freud deparou-se com a percepção de que a fala dos indivíduos aparece atravessada por sua posição subjetiva, tratando-se, portanto, de uma fala carregada de criação, de uma rememoração que preenche as lacunas do acontecimento histórico e se estrutura como uma verdade ficcional. Esse fundamento básico, melhor organizado por Lacan, é tido como fruto da constituição do psiquismo, na medida em que desde o princípio está permeado pela fantasia e pelo investimento pulsional, ao mesmo tempo que atravessado pela presença constante da alteridade.

Ao falar em estrutura ficcional, a concepção lacaniana da verdade em jogo na psicanálise aproxima-se de forma consistente dos mitos, desde cedo muito caros ao desenvolvimento da epistemologia psicanalítica. Nesse sentido, o que se entende pela criação mítica é sua função como forma narrativa que se apresenta em termos atemporais a partir de algumas constâncias estruturais. Considerando o caráter de ficção que compõe o mito, Lacan aponta só ser possível considerá-lo também com base em um fundo de saber, de verdade, com o qual a criação ficcional está em constante diálogo. Assim, estaria sempre mais próximo de uma definição a partir de sua forma – ou estrutura – do que de seu conteúdo propriamente dito.

Como exemplo disso é possível tomar o trabalho de Freud em Moisés e o monoteísmo, texto em que se encontra uma associação dos mitos culturais – como é o caso dos religiosos – com a construção das fantasias dos indivíduos, na medida em que, em ambos os casos, a narrativa é constituída e criada a partir de reminiscências de uma verdade histórica perdida. Uma concepção triangular da noção de mito, contemplando articulações entre os trabalhos de Freud, Lacan e Lévi-Strauss, elabora o caráter estrutural da criação mítica com base nas repetições e na conexão intrínseca com a linguagem. Em O mito individual do neurótico, Lacan situa o mito, de maneira preliminar, como uma forma de exprimir a verdade – não de maneira objetiva ou plena, mas na mesma medida em que o complexo de Édipo exerce a função na neurose: como modelo de relação intersubjetiva. Dentro dessa lógica, aquilo que se figura na fantasia do sujeito neurótico apresenta o caráter mitológico na substituição de elementos da história factual por novas representações. Aquilo que restou dos impasses originários do trauma se reproduz e se repete no enredamento mítico. O texto referido de Lacan tem ainda um complemento ao título – poesia e verdade na neurose – estabelecendo, de modo mais simbólico, que a constituição subjetiva humana, transcrita de forma mítica na linguagem, tem raízes que interligam poética e verdade.

O pontapé inicial para as considerações do lugar do mito na experiência psicanalítica parte, dessa forma, da premissa de uma verdade íntima impossível de ser plenamente dita, “porque o que a constitui é a fala e seria preciso, de certo modo, dizer a própria fala, o que é, propriamente falando, o que não pode ser dito enquanto fala”, diz Lacan no início de seu texto. Essa característica estrutural dos mitos, que tanto os associa à psicanálise, é também seu ponto de maior diálogo com a função da alegoria, ao estar subjugada pela falta inerente à linguagem, na medida em que nenhuma palavra atinge a plenitude de sentido. Assim como o valor do significante para Lacan, a alegoria só se faz presente por meio de sua posição contextualizada e simbolizada. Não é uma questão de conteúdo fixo, e sim de sua forma.

Vamos, então, à literatura, que possibilita assinalar o nó entre a função da fantasia, do mito e da alegoria. Para isso, empresto uma das Nove histórias de J. D. Salinger, “Um dia perfeito para peixes-banana”, no qual o leitor se depara com a narração do último dia de vida de Seymour Glass. A posição fundamental e recorrente do personagem na obra de Salinger situa o conto como um dos mais conhecidos e estudados do autor.

A extensão do conto apresenta uma subdivisão interna, embora sem marcos formais, em três atos. Primeiro, há o telefonema entre uma mulher chamada Muriel e sua mãe, no qual discutem a saúde emocional do marido da moça, com menções a acidentes anteriores e à sua atuação como soldado na Segunda Guerra Mundial. A preocupação intensa da mãe e a associação de seus motivos ao retorno do marido como veterano de guerra dão dicas do desenrolar da história e de que tipo de personagem o leitor encontrará adiante. Em seguida, a história sai do quarto de hotel e passa para a orla da praia, onde Sybil, uma menina de pouco mais de três anos, encontra Seymour – o referido marido de Muriel. O diálogo estabelecido pelos dois dá a entender que esse não é o primeiro contato entre eles e as brincadeiras se desenrolam com alguma fluidez. Preparando-se para entrar na água, Seymour convida Sybil para procurar peixes-banana. Mesmo sem saber do que se trata, a menina engaja na atividade. Seymour conta, então, a história dessa espécie inexistente: são peixes de hábitos peculiares e de vida trágica. Costumam entrar em buracos repletos de bananas e comer ferozmente mais do que aguentam. Após a refeição, não são mais capazes de sair do buraco. Sybil pergunta o que acontece com os peixes e Seymour responde que morrem após contraírem uma doença chamada febre bananosa. A cena encerra-se logo em seguida, quando Seymour a leva para fora da água, após uma ruptura nas brincadeiras, e cada um dos personagens segue seu caminho. No terceiro e último ato, Seymour vai até seu quarto de hotel, já em um estado de espírito diferente do início do episódio anterior, e comete suicídio, encerrando o conto.

Um dos caminhos de leitura, encarando a história contada sobre os peixes-banana como alegoria, diz respeito a uma antecipação, ou um relato do próprio personagem, sobre suas condições no pós-guerra, antecipando também o desfecho de sua história pessoal. Tal análise propõe uma associação direta entre os elementos principais da fábula e o pouco que se sabe da experiência de Seymour na guerra. A entrada dos peixes em um buraco de onde não conseguem sair sem sequelas mortais, resultando na febre bananosa, atrela-se ao trauma psíquico do pós-guerra de Seymour e o comportamento animalesco dos peixes comendo desenfreadamente, ao comportamento humano na guerra. Por essa via, a microficção é o mais próximo que o leitor chega de acessar a história trágica do personagem.

Nesse sentido, se encararmos a fábula contada por Seymour como uma alegoria, cumpre-se a função de um enunciado que só pode ser compreendido para além de seu sentido literal, recebendo significação por meio do contexto de enunciação, ou seja, a história dos peixes-banana no conto torna-se uma história alegórica sobre o trauma da guerra de Seymour a partir do momento que é dita por ele para uma interlocutora. Mais do que isso, o valor alegórico da narrativa implica em uma possibilidade de dizer algo sem dizer de fato na literalidade, dizendo-o em referência, em possibilidades. Essa leitura só é possível, ao mesmo tempo, reconhecendo o papel desse conto e de seu personagem principal em um cenário muito mais amplo na obra de Salinger. A ideia do uso da representação alegórica para elaborar ou expressar um trauma íntimo, por sua vez, faz a ponte final do triângulo com a criação fantasmática humana, que, invariavelmente, atualiza o que há de traumático no psiquismo. Assim como nos mitos, a forma estrutural da alegoria é o que possibilita a criação de sentido, não seu conteúdo propriamente dito.

Todas essas considerações, embora esclareçam – ou abram espaço para esclarecimentos – algo da forma como nos articulamos diante da linguagem e dos traumas, tanto socialmente quanto individualmente, atualizam uma pergunta feita por Lacan em seu seminário 3:

Como pode ser que a linguagem tenha seu ponto máximo de eficácia quando ela consegue dizer alguma coisa dizendo outra?

Isabela Cim é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como psicanalista na clínica, buscando elaborar o trabalho a partir da ética psicanalítica e de suas intersecções com temáticas de Direitos Humanos, como questões migratórias e de gênero. Além da formação continuada em psicanálise, segue com os estudos nas Letras no campo da Tradução.