Outra Cena #001 | Apresentação

Bright Darkness (Personal), por Moonassi

Apresentação

Em 7 de julho de 1898, Freud escreveu a Wilhelm Fliess uma carta na qual comenta a situação de A interpretação dos sonhos, livro publicado dois anos após a correspondência. Ao tratar do processo de escrita e de desvelamento do conteúdo, ele utiliza uma metáfora para o inconsciente: “segundo o célebre princípio de Itzig, o viajante dominical: ‘— Itzig, para onde você vai? — E eu sei? Pergunte ao meu cavalo’”. Diz ser essa também a relação mantida com a instância no trabalho teórico. Anos depois, em 1917, escreveu pela primeira vez seu dito de que o Eu não é o senhor de sua própria morada. Embora muitos elementos da concepção de Eu e de inconsciente tenham sofrido mudanças drásticas de compreensão, a proposta geral de uma vida psíquica cindida, identificada nas primeiras histéricas (fundadoras da psicanálise tanto quanto Freud), manteve-se firme ao longo de toda a história da psicanálise.

Essa cisão fundamental se apresenta pela via da neurose não como uma fratura em uma superfície anteriormente unificada, e sim como uma cortina de teatro que separa o palco da coxia. Em teoria, se seguirmos com a metáfora teatral, aquilo que se encontra nos bastidores está fora de cena, aparecendo apenas por meio da submissão aparente ao tempo e às demandas do que acontece no palco. No entanto, não há peça de teatro possível sem a estrutura que reside por trás das cortinas e escondida da plateia. É possível pensar, então, em uma outra cena: aquela que opera velada – mas que não cessa de operar, vista pelo espectador apenas por suas representações no palco. Assim se refere Freud ao inconsciente em seu trabalho de 1900, como uma Outra Cena da qual só se tem notícias através de lapsos, sonhos, chistes e sintomas.

Desse modo, nasce também o nome desta coluna, na qual me debruçarei sobre os pontos nodais que caminham por duas ruas principais: a psicanálise e a literatura. Há muito para ser dito sobre as intersecções desses dois campos e há também muita gente dizendo. Contudo, inspirada em Freud, começo esta trajetória sem saber exatamente aonde vou parar, o que vou dizer: quem me leva é o cavalo.

A literatura me acompanha desde pequena, como penso que é o caso da grande maioria dos leitores que se propõem a dizer sobre a experiência com os livros. Lembro-me vagamente do primeiro livro que consegui ler sozinha, ou melhor, do primeiro livro que decorei e reconheci o conteúdo nas palavras escritas. Era uma história infantil curta sobre um menino que encontrava na floresta um par de botas mágicas. Não sei nada além disso, tenho a vaga lembrança de que ele era um carteiro e se tornou o melhor mensageiro do rei, mas não posso afirmar com certeza. Lembro-me vividamente da capa, porém nunca encontrei o nome ou uma edição para confirmar essa memória.

Mais adiante, já um tanto mais velha, lembro-me de ler Corda bamba, da Lygia Bojunga, para uma apresentação da 5ª série. Sei que, ao longo da infância, passei por outras histórias, mas vejo nesse livro breve sobre uma menina órfã que busca recuperar a história de seus pais circenses para então começar a construir a sua um ponto fundamental na minha relação afetiva com a literatura.

Na psicanálise, o encontro com a teoria ou com a análise pessoal apresenta algo muito parecido com o que há tantos anos encontrei na escrita da Lygia e em tantas outras. Maria Rita Kehl, ao tratar das relações entre o modo de vida neurótico e o literário, em seu texto “Minha vida daria um romance”, parafraseia Lacan dizendo que somos todos, de um jeito ou de outro, personagens de um romance que é a própria vida. Isso significa dizer que não só não suportamos a errância de viver sem ter necessariamente a dimensão do lugar para onde estamos caminhando, mas também que vivemos em uma rede de complexidade social (e psíquica) tão densa que, se não houver uma tentativa de nos vincularmos a um fio narrativo que ligue nossas origens com nosso presente e futuro, ficamos desamparados de sentido. Essa proposta faz valer a noção de que o sujeito moderno, com base no qual a psicanálise se estabelece como teoria, opera como uma espécie de polo interligado ao sujeito literário, como duas pontas da corda (bamba) esticada sobre a qual buscamos nos equilibrar com dificuldade. As duas pontas são fundamentais para o sustento do sujeito, de modo que o risco, caso elas se soltem, é grande. Isso significa dizer que, atravessados e fundados pela linguagem, os sujeitos modernos fazem do discurso um espaço de constituição de si mesmos.

Dentro da lógica neurótica em que o sujeito se converte em personagem de um romance, sua existência está consequentemente experienciada como personagem da escrita de um outro alguém. Não há, para o indivíduo pensado por meio de seu inconsciente, a possibilidade de uma existência descolada do papel da alteridade em formato de Outro, especialmente no tangente ao alicerce da linguagem na cultura. Explorar a dimensão literária e psíquica dos sujeitos modernos, portanto, significa pensar em modalidades de sofrimento que se fundem justamente nas possibilidades culturais vigentes, na medida em que vivemos de linguagem e falamos de nós mesmos a partir dela. Assim, ao tratar do sujeito pensado pela psicanálise, nos deparamos com indivíduos profundamente afetados pelos processos de industrialização, de organização do núcleo familiar pautado na lógica burguesa e do aprofundamento das noções de propriedade pública e privada, somados às novas construções morais decorrentes das mudanças na estrutura social. A relação do trabalho literário com o meio cultural não é assim tão diferente.

Essas elaborações mais recentes sobre a articulação dos dois campos não são, por outro lado, as absolutas pioneiras do assunto. O estudo da estrutura mítica do modo de vida psíquico sempre esteve na raiz do pensamento de Lacan e, de forma ainda mais clara e conhecida, em Freud. A psicanálise estaria em posições muito diferentes, por exemplo, sem a relação íntima com as histórias de Édipo e Narciso, das quais foram retirados conceitos fundamentais à ética analítica. A proximidade com os mitos é também um dos pontos mais bem utilizados por autores da teoria literária ao olhar para a psicanálise. Além disso, Freud sempre manteve no horizonte de seu trabalho a proposta de que os artistas acessam pela via do fazer o mesmo que a psicanálise acessa pela via da teoria e da clínica. Sendo assim, com elaborações acerca dessa interdisciplinaridade, aqui, busca-se uma continuidade do que, desde o princípio, é fundamental para a compreensão da experiência analítica.

Com essa base inicial estabelecida, o que poderá se encontrar nestes textos, com base em minhas próprias palavras, é uma exploração com níveis e objetos diferentes dessa relação tão multifacetada entre essas duas ruas. No fim das contas, talvez a psicanálise (assim como eu) tenha ainda mais a aprender com a literatura do que a oferecer. Veremos. Contudo, resta o desejo de que seja possível, pela via da palavra, atravessar com um pouco mais de tranquilidade a divisão de cortinas para acessar a coxia, a Outra Cena.

Isabela Cim é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como psicanalista na clínica, buscando elaborar o trabalho a partir da ética psicanalítica e de suas intersecções com temáticas de Direitos Humanos, como questões migratórias e de gênero. Além da formação continuada em psicanálise, segue com os estudos nas Letras no campo da Tradução.