espaços entre o final e o inaugural
Às 19h30 de uma terça-feira, atrasada, eu entro pela porta de um conjunto do 9º andar em um prédio antigo no centro de Curitiba. Lá dentro, Larissa Kautzmann, escritora estreante, responde a perguntas a respeito de seu livro Nem toda viúva chora. Fala sobre o processo de escrita, a mentoria recebida, as inspirações e as emoções do resultado. Descubro, então, que tudo começou com um miniconto nascido em um exercício de unir significantes supostamente desconectados – nesse caso, um chapéu panamá e um cemitério – em uma única narrativa. Larissa escreve, assim, o relato de abertura de sua novela e apresenta aos colegas, que, tomados pelo encantamento e pela curiosidade, anseiam em saber mais sobre essa tal viúva, narradora de pequenos relatos divididos em blocos de texto. Querem escutar o que ela tem a dizer.
O que é, afinal, que a viúva tem a dizer? Que convite é esse, feito ao leitor através de um acontecimento trágico na vida da narradora? Ainda que cada um vá elaborar sua própria relação com os caminhos da personagem, penso que há uma atração primeira pelo anúncio de uma ausência. Empresto essa ideia de algo dito no lançamento: o título começa por anunciar a ausência do choro, em um contexto em que se esperaria que as lágrimas aparecessem. Ainda, no próprio conceito de viúva está implicada a ausência de um marido, que esteve, mas não está mais. Um objeto perdido.
No segundo relato – vou me referir assim aos blocos da divisão de texto, pois me parece coerente –, a viúva recebe uma ligação, no fim da madrugada, com a convocação de que fosse ao hospital, pois o marido, Pedro, havia se envolvido em um acidente na estrada noturna. A cena seguinte é a de um banho, entre a ligação e o caminho do hospital, prolongado por minutos que parecem horas para que não se chegue à factual notícia do falecimento, que só poderia ser entregue presencialmente. “Ouvi falar que não dão notícia de morte por telefone. Que bom que alguém decidiu. Por vezes, até quem não tem compaixão é capaz de gestos bonitos. E, com alguma sorte, gestos bonitos podem até virar protocolo”.
A viúva, em seu próprio protocolo, limpa uma teia de aranha, toma um café, rememora um roubo de fragrâncias. E aí vem a notícia oficial da morte, com poucas palavras e horário registrado – “os choques podem ser portais do tempo”, diz. A morte de Pedro, sem choro derramado, faz retornar para o que há de mais familiar e, ao mesmo tempo, distante: a perda da mãe, na infância, e os colos oferecidos pela avó. Talvez viúva não seja quem perde o marido, e sim quem encontra nas companhias mais amadas a angústia silenciosa da morte, marca presente de uma ausência fundamental.
“Parei na frente do espelho, me olhei e saí. Resolvi voltar pra frente do espelho e me examinar com mais cuidado. Eu não parecia comigo. Fui sendo abatida pelo sentimento de me desconhecer. Fiz esse trajeto sofá-espelho uma dezena de vezes pra tentar me achar pelo caminho. Falei e gritei com a mulher do espelho pra ver se ela reagia. A resposta era um olhar parado me olhando nos olhos. Eu não era mais eu. Alguma coisa tinha secado.”
Na sequência do luto, a morte do homem amado parece mesmo uma traição. Um abandono de compromisso, uma quebra do pacto de fazer companhia um ao outro no esforço vital de compreender o que se vê no espelho. Assim, a saída de cena do outro escancara a própria falta, antes disfarçada pelas mazelas do laço. Como em um incêndio que acomete o prédio ao lado, mas que invade a casa com cinzas pelas janelas abertas, sem aviso e sem previsão. Isso não significa dizer, no entanto, que o espaço deixado pelo marido, inicialmente visto como um vazio avassalador, seja sempre terrível. Às vezes, o terrível são as tentativas sempre incompletas de preencher o luto com palavras de afirmação. É o caso das ligações telefônicas, no aniversário do falecido, roubando as horas da vida para afirmar à viúva sua própria condição de viúva.
De todo modo, entre reuniões de condomínio e novos flertes, as bordas da ausência vão se assentando. Por um lado, a crueldade dos laços formais se apresenta na diminuição de sua importância na família do falecido. Por outro, novas possibilidades de escutar sofrimento e o prazer se apresentam. Aos poucos, as paredes de uma nova casa vão sendo pintadas, para dar continuidade ao exercício constante de elaboração da vida.
Já diria Lacan em seu Seminário VII, em um aforismo tão repetido fora de seu contexto original de estudo sobre a transferência: “Amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”. Para isso, é preciso navegar a lagoa da ausência. E, por fim, já diria a viúva: “Cada um que gozasse do próprio sofrimento com a narrativa que melhor lhe servisse. Imaginação também serve pra isso. Triste é não doer por ninguém”.
Isabela Cim é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como psicanalista na clínica, buscando elaborar o trabalho a partir da ética psicanalítica e de suas intersecções com temáticas de Direitos Humanos, como questões migratórias e de gênero. Além da formação continuada em psicanálise, segue com os estudos nas Letras no campo da Tradução.