: amanhã bem cedo eu resolvo o medo

: amanhã bem cedo eu resolvo o medo | Francisco mallmann junto de rollo de resende

rollo,
margeio a solidão e escrevo uma carta para você — a quem ofereço a minha mão e peço que me conduza. estou longe de curitiba e não me lembro de nunca ter estado tão perto. falo teu nome em voz alta e penso no meu encontro com suas palavras. é com elas, agora, que me implico, como se inventando para nós uma estadia onde é mesmo possível dizer nós — essa palavra cheíssima e oca, ventania e futuro, reivindicando circunstância e invenção. imagino nossos corpos se movendo na página — porque fazer corpo, para mim, é parecido com fazer escrita — e desconfio que para você também. o desejo de inventar alguma emancipação, ainda que, às vezes, ela seja tão contrária ao gesto de dar nome. fazer corpo e fazer escrita parecem mesmo contraditórios para quem prefere acariciar o mistério sem domá-lo. eu imagino. eu tateio. eu misturo. eu me crio, te criando. eu não sou só. eu tramo os meios de nos tocarmos. eu tranço os nossos cabelos. eu sei que as palavras entram na corrente sanguínea, porque eu sei que as palavras fazem vida e morte e vida e morte e fazem — eu te li. e você morreu na década em que eu nasci — eu quis que você vivesse, mas não é assim. não é assim o tempo daquelas que sabem que é espiralado isso, que nos fizeram acreditar ser retidão. é pela não linearidade que me irmano a você. porque fazer irmãs, amor e confidências não é e nem pode ser pelo tempo da brutalidade. estamos nós, dedicadas a criar algum lugar para nossas existências sem lugar. e parece que é na poesia que alguma coisa acontece. aqui, rollo, oferto a você quatro movimentos que fiz ao te imaginar. eu quero que você viva.

I
quero encontrar de quem me arrancaram

começa com um telefonema de desirée dos santos e julia raiz. acho que desi ganhou da mãe de uma aluna seu água mineral. elas me chamam e dizem pelo telefone alguns dos teus poemas. nessa noite não durmo, pensando nos versos. acho que senti febre e às 9h eu abri, com o próprio dono, um sebo da treze de maio onde encontrei um exemplar do que eu havia escutado algumas horas antes. saí correndo com o livro nas mãos como se alguém estivesse me esperando chegar. era eu. porque sem saber eu sabia que nada nunca seria como antes, nada nunca foi, nada nunca é. então, era assim: eu corria para me encontrar comigo e com você. na cidade em que a gente viveu, vivia e segue vivendo. tão fria, ela, rollo e, ainda assim: repara no nosso calor. encontrar de quem fomos arrancadas — que ação linda e difícil. não sei quantas vidas serão necessárias.

II
correr o mundo e acabar sempre passando pela xv

em um café, em uma esquina. cândido de abreu e paula gomes. nem hora nem dia nem céu nem noite nem chão nem eu. algumas coisas alteram a estrada enquanto reafirmam o caminho. queria que tivesse sido antes, queria que não tivesse sido, ainda, para ser agora e ser sempre. queria ser teu amigo, teu namorado, teu parceiro, teu interlocutor, queria fazer o mundo com você, queria estar aqui onde estou. o espanto de abrir um espelho — e então quebrá-lo até virar pó, purpurina-fatal, caco de imagem. poesia. despossessão. se saber junto de alguém, invertendo espaço e tempo e história e tudo. talvez a distância seja mesmo algo a ser percorrido com a língua. talvez o que tivesse de ser já havia sido. talvez você tenha me sonhado — as minhas, as nossas, as coisas todas abertas, errância&cintilância — nós, que contamos sonhos, falamos de amigos que se ausentaram. talvez você tenha me guiado pelas madrugadas, essas, tão profundas e translúcidas. eu também andei por aí desejando que me desejassem — tantas vezes, as coisas destituídas de carinho. eu também já fui sal, cauda de pavão. talvez fosse tua uma das vozes que me sopravam vida, desde que eu cheguei aqui. eu acho que sim. talvez você tenha me inventado. eu nunca deixei de te levar junto.

III
estou tentando fazer com que conheças a mim através da linguagem, vês?

penso agora, rollo, nas questões ditas nossas, mas que são a nós atribuídas — e isso, sem dúvida, muda tudo. foi-nos recusado esse processo de compreensão: se o léxico com o qual queríamos existir era mesmo esse com que nos apresentavam. de algum modo, as palavras, seus limites e possibilidades, com as quais fazemos presença, não foram por nós decididas — foram? porque sempre transitórias, porque sempre se fazendo no risco do desfazimento. por isso, a transformação. por isso, a fuga. por isso, a variação. duas possibilidades: ou essa produção ininterrupta da diferença ou essa produção compulsória de assimilação. mas não — suas criações me ofertam percursos muito mais interessantes. escrevo para você e com você — sei que me entende. a poesia, essa escavação que escapa do isto ou aquilo e que se faz nessa maravilha de isto e aquilo e aquilo-outro. nossas formas precárias de fazer filmes, que enganam — ouso dizer — as ficções de visível e invisível. estou tentando fazer com que conheças a mim com as palavras do mundo sabendo que também elas não podem tudo. entrar e sair da linguagem, o exercício impossível. porque não há corpo que não seja sustentado pela linguagem, pela interpelação, pela violência da linguagem mesma, desde o princípio, por seu poder prévio — este antes que nos atinge e do qual, às vezes, sabemos tão pouco. e, sim: se a linguagem sustenta o corpo, pode também ameaçar sua existência. rollo, estou tentando fazer com que conheças a mim agora mesmo, antes e depois.

IV
nunca irei escrever alguns poemas

eu estou mudando o mundo para dentro de mim, você escreveu. e eu tenho nas mãos — como tem quem me lê — sua antologia de poesia. ficou muito para ser feito, rollo — e, no entanto, olha tudo o que há. nunca escreveremos alguns poemas e, talvez, por isso, a gente se dedique, ainda, um pouco, ao amor — tão caro para nós. tomara mesmo que os encontros sejam agora muito mais vastos do que antes. tomara mesmo que este teu livro seja um espaço de encontro do que nos arrancaram. que ele nos forme e nos intrigue. que nos inspire estranheza, que doa e livre o livro. que seja a beleza imensa que é. tomara mesmo que eu siga correndo para te encontrar. e que alguém me acompanhe. por mais que permaneça aqui, estarei sempre só de passagem, você me disse. e eu lhe digo: eu vou com você.

outubro, 2022

Francisco Mallmann atua entre a escrita, a performance, as artes visuais e a teoria. Publicou Haverá festa com o que restar (2018), Língua pele áspera (2019), América (2020) e Tudo o que leva consigo um nome (2021). Este breve texto é uma ação de agradecimento a Rollo de Resende, artista importantíssimo em sua vida e formação.