voracidades deslocadas
Para falar do que quero expor aqui, é preciso uma pequena contextualização. Aqueles que migraram, ao menos parcialmente, para a leitura de livros digitais vão reconhecer a existência de uma ferramenta encontrada em alguns gadgets de leitura, que mostra ao leitor, através de uma linha pontilhada, quais os trechos do livro em questão que mais costumam receber marcações de outros leitores. Não sei bem qual é o critério, como exatamente é feita essa contagem. Mas, de todo modo, a ferramenta existe e me mostra a cada livro o recado numérico de highlights.
Essa ideia, que parece servir ao propósito de globalizar a relação entre leitor e texto, é meu pior inimigo. Não o pior, pois a razão de nossa relação é só minha, mas ao menos um antagonista significativo.
No fim do ano passado, em meio a um período de poucas leituras e muita dificuldade de concentração, em ler e escrever, me arrastei pelo primeiro livro da tetralogia napolitana da Elena Ferrante. As recomendações para que lesse esses livros eram inúmeras, sempre de pessoas que se sentiram mesmo muito comovidas pela prosa da autora, por motivos diversos. Meu arrasto nada teve a ver com a escrita de Ferrante, que realmente me agradou. Acontece que, para mim, dois tipos de livros são marcantes: aqueles que leio com um desejo intenso e sem me permitir interrupções, e aqueles que sinto impossíveis de ler, que meu cérebro (não é bem ele) rejeita. Anna Karenina, por exemplo, é um dos livros mais marcantes que já li e que, por algum motivo, eu já sabia que me comoveria desde antes de começar. Não sei quantos anos demorei para terminar, mas foram alguns. Passei por edições compradas e emprestadas, sempre com alguma pausa longa demais para que fosse possível retornar de onde parei. Cada vez que recomeçava, era mesmo do zero. Em determinado momento, cheguei a abandonar – sem que minha consciência pudesse dizer algo a respeito – a edição em um banheiro de shopping. De verdade, não sei o que tinha de tão íntimo no livro e, pensando bem, parece até que meus sentimentos eram todos baseados em uma suposição do que aquele desejo trágico da Anna poderia me revelar.
No que se trata de Amiga genial, eu esperava exatamente o que encontrei, quanto ao tema e às sensações de leitura, e me pareceram extremamente claros, desde o início, os motivos de a história me tocar tanto. Bem por isso, demorei um tempo para terminar e me faltou coragem (até então) para dar sequência à tetralogia. Mas, com vontade de continuar lendo o que a autora tinha a dizer, fui atrás de seus ensaios não ficcionais e me encontrei com As margens e o ditado: sobre os prazeres de ler e escrever. A ironia do título era grande, considerando minha sensação de estagnação profunda em meu contato com a palavra escrita. Comecei sem grandes pretensões e, ainda que estivesse absorvendo algo da leitura, me percebi esperando, buscando com os olhos, alguma marcação da maldita ferramenta de highlights. Onde achava que havia uma boa frase, mas sem o registro do aparelho, eu ficava meio indignada. E com isso, me percebendo assim, entendi algo que esclareceu um pouco dos conflitos que tenho com esse processo todo de me relacionar com as palavras.
Eu vou aos livros com uma voracidade que nada tem a ver com a leitura, com o ato próprio de conhecer literatura, ou uma história: quero encontrar algo específico e ao mesmo tempo amplo. Passo pelas frases rapidamente como quem diz: isso não, isso não. Onde está? Me mostrem, por favor, finalmente, algo que eu possa ler e pensar que estou ali. Escondida atrás da dobra da letra. Por favor, me dê uma frase para que eu possa ler e saber. Para que eu leia e diga: sim, isso eu sabia. Mas não podia saber, em palavras, antes de lê-las assinadas por outra pessoa. Me diga de uma vez o que é isso que eu tenho que saber para poder saber da vida, isso que mora na vírgula, isso que é minha causa. É como passar o marca-texto em um livro didático. Encontrar ali um fator pedagógico. “Ah, sim, isso cairá na prova, deve ser importante”. Nessa, devo deixar escapar tanto daquilo que precisa estar na composição para que um trecho tenha lugar e razão de ser.
Isso não. Isso não. Como quem diz: me dê uma frase que eu possa comer, que eu possa engolir como definitiva, como final. Como sentença. Uma frase que preencha o suficiente, para que nada mais, nada de próprio, de inconsistente, de agressivo e imprevisível, possa aparecer. É um tipo de violência com o próprio texto, que fica submetido a um exame de docilidade, uma exigência de que se conforme ao meu anseio de satisfação, ao mesmo tempo que é também uma violência comigo mesma, que fico presa nessa busca cíclica, sem dar espaço para, com todos os efeitos de comoção, me relacionar com a palavra e com a ficção da linguagem. É isso, ao meu ver, o que Lacan explicita em O estádio do espelho como formador do eu, um dos textos que compõem seus Escritos, quando nomeia algo da neurose como “uma liberdade que nunca se afirma tão autêntica quanto dentro dos muros de uma prisão”. É assim, me parece, que o neurótico se porta frente ao outro, com um anseio de poder capturar prontamente uma mensagem que o diga “Tú és isto”, que sirva de marca definitiva de si.
Há ainda uma outra questão, retornando ao dilema da palavra escrita: o tempo de processar as coisas antes de poder transformá-las em escrita costuma ser longo e, nesse meio-tempo, as mesmas ideias e repetições insistem no pensamento. É uma coisa esquisitíssima escrever um texto novo pela primeira vez e pensar que ele diz o mesmo, exatamente o mesmo, de todos os outros que foram escritos antes. Sensação essa que pode ser “facilmente” desmistificada ao perceber, com algum custo, que quem recebe as minhas palavras não vive dentro da minha cabeça. Há uma diferença fundamental e crucial entre eu e outro, há uma barreira que promove uma espécie de mal-entendido infinito. Pro bem: já que 1 + 1 nunca resulta em 1, estar com o outro significa poder resguardar o direito de uma intimidade secreta, de uma linguagem própria demais e que preserva as marcas pessoais de desejo e de pulsão. Pro mal: um mal-entendido é coisa difícil de bancar e escancara a impossibilidade de uma Resolução, com R maiúsculo, para a vida das relações. Ou seja, a frase que eu incessantemente busco para selar meu destino não está em lugar algum.
Um dos contos de Silvina Ocampo, nomeado Voz ao telefone, toca em um ponto que me remete a isso que é o intervalo do mal-entendido. Um narrador adulto – Fernando – relata a um interlocutor anônimo, com quem conversa por telefone, um evento drástico de um de seus aniversários infantis, como explicação acerca de seu entristecimento em festas infantis e de seu encanto ambivalente por palitos de fósforo. Esse encanto, de extrema importância para seu destino, tem seu pontapé inicial em uma proibição, sob ameaça do risco de botar fogo na casa, acidentalmente.
O que interessa sobre Fernando aqui é sua lógica de exclusão: enquanto criança, o menino parece perceber que há na família um desencontro entre o universo dos adultos, especialmente da mãe (e das mulheres) e o seu, infantil, se refugiando em seus dias na cozinha, com os funcionários da casa. Os objetos acumulados em grande quantidade pela família expõem ainda mais o esvaziamento kitsch da vida burguesa, alimentada pela alienação de si mesma. É na festa de um de seus aniversários que se encontra, definitivamente, com esse lugar à margem do laço. A mãe, dedicada à festa, organiza o espaço da casa de modo a tirar todos os objetos de valor, móveis e decorações adultas, para evitar que algo se destrua com as crianças visitantes. Apenas uma sala, “a salinha mais íntima da casa”, onde se reuniam algumas mães, foi preservada em sua integridade, pois lá os pequenos não entrariam. Fernando, incomodado com sua função de interagir com as demais crianças, infiltra a sala das mulheres para escutar secretamente suas conversas, que rodeiam fofocas e enigmas amorosos, além de vê-las medindo cinturas e pernas com uma fita métrica. Quando descoberto, a mãe retoma uma postura formal, educadora, diferente de como se portava com as amigas, e o expulsa, renegando-o novamente ao espaço da exclusão, daqueles que ainda não adquiriram a possibilidade de participar desse mundo atraente e misterioso dos adultos. O mundo onde há algo, algo que circula como um saber íntimo. O menino, no entanto, não se conforma com esse lugar de diferença. Convence as outras crianças, tranca a porta da salinha e incendeia a casa, que sucumbe às chamas com as mulheres aprisionadas na vingança de Fernando.
As crianças “monstruosas”, cruéis e dissociadas de suas próprias responsabilizações, são abundantes na prosa de Silvina Ocampo. Além da instrumentalização desses personagens para o efeito do unheimlich da autora, há algo de profundamente pulsional que se revela nesses atos, nos delitos de violência e destruição que acontecem em tom de infância. Essa crueldade, é assim que a percebo em mim e em minha leitura, é uma das coisas que advêm do mal-entendido, não necessariamente entre duas pessoas, mas de um mal-entendido interno, desse buraco íntimo que funda o sujeito como terceiro, antes de poder dizer-se como agente próprio. E aí, na ânsia de suturá-lo, acabamos indo atrás de engolir um texto, destruir um amor, punir uma origem.
Voltando à minha própria voracidade, pois nada disso se trata de Fernando, que só me emprestou o relato, para encerrar: é como se, ao não encontrar A Frase, a definição que me serviria – em ideal – finalmente como a mais livre das prisões, trancasse o livro na salinha íntima das mães para então tacar fogo, rancorosa, pela falta que não suturou em mim.
Isabela Cim é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como psicanalista na clínica, buscando elaborar o trabalho a partir da ética psicanalítica e de suas intersecções com temáticas de Direitos Humanos, como questões migratórias e de gênero. Além da formação continuada em psicanálise, segue com os estudos nas Letras no campo da Tradução.