Outra Cena #006 | Deslocamento geográfico e simbólico em Sylvia Molloy

DALÍ, Salvador. A persistência da memória. 1931. Óleo sobre tela. Museum of Modern Art, Nova Iorque.

Deslocamento geográfico e simbólico em Sylvia Molloy

Uma vez, convocada a falar sobre a clínica das psicoses em um de meus encontros de supervisão, me expressei dizendo ser importante para a direção do tratamento perceber que, ao escutar um paciente estruturalmente psicótico, escuto um outro idioma, uma língua que se organiza de forma particular em torno de um léxico supostamente comum. É verdade, disse minha supervisora, mas, ainda que de maneira diferente, é assim também com o atendimento das neuroses. Para que eu seguisse adiante com o trabalho, a sugestão dela foi que encarasse todos os atendimentos como o aprendizado de uma nova língua, investigando o uso das palavras dentro daquela rede específica de significantes que circula no consultório. O respaldo teórico para pensar por esse caminho é claro, uma vez que uma das máximas mais conhecidas do trabalho de Lacan é a ideia de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Apesar de ter conhecimento do texto lacaniano antes de começar a atuar na clínica, foi a experiência da escuta propriamente dita que me apresentou em vida o que a proposta estruturalista afirma. 

A importância de operar com esse fundamento se dá principalmente pelo fato de que uma palavra dita em transferência não carrega consigo um sentido pronto, uma vez que depende da construção completa e da própria designação de sentido feita pelo sujeito. De modo geral, o que pauta a fala em análise é uma falta de sentido pleno, uma falta escancarada pelo uso da linguagem. Ao mesmo tempo, retomar Freud torna impossível ignorar que não só o indivíduo constrói o próprio idioma como também a língua na qual é inserido pelo Outro ao crescer o constitui. 

Sylvia Molloy, em Viver entre línguas, impõe com suas narrativas autobiográficas uma questão a mais: como funciona essa idiossincrasia linguística para um indivíduo dividido entre várias línguas? Sylvia nasceu em Buenos Aires, mas ao longo da vida passou também por Paris e Nova Iorque, onde trabalhou em maior volume. Foi criada em meio a duas famílias de ascendências diferentes, sendo a paterna inglesa e a materna francesa. Foi criada bilíngue, tanto pela escola quanto pela família paterna, que manteve sempre o falar do inglês. 

A obra em questão é um conjunto de pequenos ensaios autobiográficos, pautados profundamente pela memória da autora, tematizando sempre de um jeito ou de outro o lugar que ocupa nos idiomas de sua vida, e vice-versa. Na escrita de Molloy, o deslocamento, tanto geográfico quanto linguístico, parece situá-la em suas perguntas sobre a própria identidade, fruto de relações multiculturais e da sensação de estrangeiridade, de estar alheia às próprias – e múltiplas – casas. As histórias contadas são apresentadas como verdadeiros fragmentos, sem que haja uma relação direta entre cada um deles, embora fique claro que são propriedade mnêmica de uma única pessoa. Dessa forma, acompanham o próprio movimento de Sylvia em transitar por suas heranças territoriais e pelos lugares onde escolheu viver. A Argentina aparece, na maioria das vezes, como um recanto infantil do qual não se pode escapar, ainda que não seja possível nele permanecer verdadeiramente. Uma de suas propostas é, inclusive, a de que o bilinguismo existe sempre a partir de uma língua primordial, nossa primeira hospedeira. 

Em um desses relatos, a memória retorna ao colégio de infância da autora. “Cada idioma tem seu território, seu tempo, sua hierarquia”, diz. Na regra escolar, durante as manhãs devia ser falado o inglês, e durante a tarde, o espanhol. Os desdobramentos dessa organização eram vários, desde uma gramática particular para as piadas impróprias até uma hierarquização que elevava o inglês ao lugar de idioma maior, uma vez que o espanhol vinha de casa. A parte mais interessante, no entanto, parece ser a mistura. “A casa reproduz essas divisões no romance familiar: espanhol com a mãe, inglês com o pai. Mistura (quando não estão te ouvindo) entre irmãs, como uma espécie de língua particular”. Ao usar o termo romance familiar, Sylvia Molloy deixa claro que falar é se posicionar em uma trama complexa de afetos e idealizações, sempre em relação às origens. 

Dentro desse esquema inquietante – no sentido do Unheimlich freudiano, que expressa bem a noção de pertencer a uma condição permanente de estrangeiridade e, portanto, de não pertencimento –, a experiência dos idiomas remete também à ausência de algo, como foi dito sobre a falta de sentido pleno da linguagem anteriormente. Na vida de Molloy, isso se expressa, por exemplo, nas reflexões acerca do monolinguismo da mãe, que, filha de um casal de imigrantes com onze filhos, não aprendeu aquela que seria sua língua raiz, materna. Em tentativa de reparação, Sylvia diz ter buscado aprender o francês ainda criança, para recuperar aquilo que sua mãe havia perdido. 

Para tentar sanar quaisquer dúvidas quanto ao que se encontra nesse livro, reproduzo a seguir um trecho fundamental:

“Há (é preciso encontrar) um ponto de apoio, e a partir desse ponto a relação com a outra língua se estabelece como ausência, ou, antes, como sombra, objeto de desejo linguístico. Apesar de ter duas línguas, o bilíngue fala como se sempre lhe faltasse algo, em permanente estado de necessidade. […] Sempre escrevemos a partir de uma ausência: a escolha de um idioma automaticamente significa o fantasmamento do outro, mas nunca sua desaparição. Aquele outro idioma em que o escritor não pensa, diz Roa Bastos, pensa-o.”

Para ser justa, Sylvia Molloy facilita meu trabalho ao usar exatamente os mesmos termos nos quais se fundamenta a psicanálise. Mas o fato é que poucas vezes encontrei uma demonstração tão clara do movimento da castração simbólica, da alteridade imposta sobre o próprio sujeito ao existir no mundo e, principalmente, ao falar.

Isabela Cim é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como psicanalista na clínica, buscando elaborar o trabalho a partir da ética psicanalítica e de suas intersecções com temáticas de Direitos Humanos, como questões migratórias e de gênero. Além da formação continuada em psicanálise, segue com os estudos nas Letras no campo da Tradução.