Outra Cena #005 | Dos pais à escrita

BOURGEOIS, Louise. 10 AM Is When You Come to Me. 2007. Água forte sobre papel de notação musical. Museum of Modern Art, Nova Iorque.

Dos pais à escrita

O início de Romance familiar dos neuróticos, publicado por Freud em 1909, propõe de forma objetiva a necessidade de que os filhos se desprendam da autoridade dos pais, deixando para trás o desejo, forjado em idealizações, de tornar-se como eles. Tal dinâmica (ou melhor, demanda), em suas mais variadas versões, é facilmente encontrada em qualquer divã e se apresenta constantemente marcada pela sensação de abandono ou preterimento. Apesar desta apresentação genérica – como será qualquer conteúdo analítico desprovido da contextualização específica de cada caso –, o pensar sobre os enlaces familiares, tão caros à psicanálise, abre espaço para uma pergunta profundamente neurótica: 

Que lugar tenho eu para o mundo? 

Uma questão como essa se desdobra por todos os lados da vida humana – dos pais ao trabalho, das amizades aos amores. Não à toa, a encontramos na literatura com tamanha frequência. Em Pequena coreografia do adeus, segundo livro da brasileira Aline Bei, uma resposta possível passa pela arte, pela própria escrita. Ao menos é essa a posição de Julia Terra, protagonista da história. Mas, para chegar lá, foi preciso atravessar caminhos áridos de uma mãe violenta e um pai distante. O livro começa no fim da infância de Julia, morando na casa da mãe após o divórcio dos pais. 

A dinâmica com a mãe é cansativa. Toda e qualquer coisa feita pela menina acarreta uma briga, uma reclamação, um rechaço. Julia recebe a agressão em silêncio, na maior parte das vezes, mas, quando fala (seja para a mãe, seja para o leitor) sobre isso, faz de maneira objetiva e racional: é como uma situação da rotina que deve manejar. A situação não era tão diferente antes do divórcio, mas Julia se sentia, em partes, aliada ao pai, sujeito também à violência da esposa. Após a separação, no entanto, a distância entre pai e filha se acentua, deixando um espaço enorme de desejo de amor por parte da menina. “O que me deixa triste”, escreve a personagem em seu diário, “é que meu pai me abandona muito. A minha mãe ele abandonou de uma vez, mas comigo é pior, ele fica me abandonando devagar”.

Aline Bei, assim como em O peso do pássaro morto, captura de maneira sensível o olhar de uma criança ao mundo dos adultos e ao próprio corpo. Há uma cena, ainda no começo, na qual os pais, após se reconciliarem da briga feia do dia anterior, se fecham no quarto e passam horas da tarde de sábado sozinhos. Julia diz que “podia farejar o afeto que não me era dirigido a mil metros de distância”; “ontem mesmo vocês estavam berrando um com o outro e agora estão no quarto fazendo Deus sabe o quê”. 

“será que eu sou a única sã desta casa?
ah, o peso!
de ser a
Única”

Não há nenhuma indicação explícita do ato sexual, apenas a percepção da menina sobre o estado emocional dos pais e a sensação de estar de fora, deixada para fora do quarto onde algo acontece e define claramente uma diferença de posição entre pais e filhos. Há algo de tocante na maneira escolhida pela autora de dar voz ao olhar infantil, não só pelo conteúdo, tão intimamente humano, mas pelo fato de que a narração se assemelha muitíssimo ao modo como um adulto é capaz de narrar seu próprio olhar infantil em um processo de análise. Trata-se de um ato de narrar que sabe, a todo momento, não estar falando de fatos, mas de uma interpretação a posteriori daquilo que foi vivido e sentido nas primeiras idades. O romance familiar dos neuróticos só pode ser mesmo um romance, no sentido propriamente literário. 

Com o pai fora de casa, Julia é convocada pela mãe a ocupar dois lugares: o da filha responsável e o de marido interino. Assim, diz a personagem, abre-se um espaço na cama da mãe para que a filha se deite e para que conversem no escuro das madrugadas. Essas breves horas foram, ao longo de toda a vida da menina, o único momento em que ela se sentia próxima da mãe, tanto por afeto quanto por compartilhar a vida. 

Enquanto a menina crescia, a vida seguiu com as reminiscências desse não lugar ocupado na própria casa e, ainda, no próprio corpo. É assim nas aulas de balé, em que era necessário movimentar o corpo e expressar algo que Julia parecia conseguir apenas imaginariamente. O uniforme de cor errada, os membros curtos demais, as inimizades com as colegas: a ausência de lugar permanece, atualiza-se, deixa às claras a impossibilidade do laço social. Mais tarde ainda, adulta, a personagem se encontra com pessoas que parecem, à sua maneira, construir lugares próprios. Na estranheza dos outros, das patroas, dos clientes no café, dos boxeadores solitários, Julia encontra a possibilidade de dizer de si, e da vida, e do mundo, por meio das palavras no papel, reinterpretando, enfim, os lugares que lhe foram ofertados, desde os primórdios das relações familiares aos novos laços construídos. A mãe tão desejada e odiada, no entanto, permanecerá até o fim sempre a um passo de distância. 

Ler os escritos de Aline, para mim, é uma experiência sempre tocante. A leitura, mecanicamente falando, é rápida. Mas as palavras parecem pegadas firmes de sapato deixadas na areia da praia. Algumas partes dessa coluna estiveram abandonadas no meu computador por semanas antes que fosse possível sentar e terminar de escrever. Os motivos para tal são muitos: tempo, trabalho, cabeça, criatividade, confiança etc etc etc. Porém, no fim das contas, talvez a maior das dificuldades seja produzir alguma coisa (minimamente coerente) de experiências tão pessoais de leitura. Essa é também uma dificuldade do trabalho com a psicanálise. 

Confesso para vocês, leitores hipotéticos, que não sei o que é este texto. Não se trata de uma resenha do livro da Aline Bei, mas talvez possa se colocar como uma. Não é um texto sobre conceitos psicanalíticos e não servirá de tal – na verdade, o que digo aqui da psicanálise funciona apenas como uma marcação de que essas ideias estão aqui, no fundo da minha cabeça enquanto leio e escrevo. Será publicado junto dos outros ensaios escritos para este blogue, então é, pelo menos em função, uma coluna. Se foi aprovado pelos editores, acredito ser também um ensaio. Mas acho que o fio principal da existência disso aqui é um resultado da dedicatória de Aline no início do livro, dizendo:

Para todos aqueles que procuram uma
Casa dentro de casa
Em especial aos que procuram desesperadamente.

Às vezes, parece que escrever não pode ser outra coisa que não isso. 

Isabela Cim é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como psicanalista na clínica, buscando elaborar o trabalho a partir da ética psicanalítica e de suas intersecções com temáticas de Direitos Humanos, como questões migratórias e de gênero. Além da formação continuada em psicanálise, segue com os estudos nas Letras no campo da Tradução.