um remédio difícil de engolir
Leia a primeira crônica de Rindo aos prantos, livro de estreia da jornalista Antonia Leão
Eu tive quatro ataques de riso no dia que minha vó morreu.
O primeiro aconteceu quando precisei chamar a ambulância. O relógio do meu celular marcava 23:40 quando eu tive que procurar o número na internet, pois havia esquecido. Lembro de pensar poxa, nos Estados Unidos eles têm um número para todas as emergências, bem que podia ser assim aqui.
“Central da Samu, serviços ambulatórios, como posso te ajudar?”
“Minha vó está morrendo. Ou morreu. Não sei. Ela não respira”. Minha voz era apressada e ansiosa em contraste com a do outro lado da linha. Eu poderia ter dito que um passarinho pousou na minha janela, pelo seu tom calmo. Isso só me deixou mais nervosa.
“Ok, senhora, espere um momento”. Um momento? Ela não tem um momento!
“Ela está assim há quanto tempo?”, perguntaram, um momento e meio depois.
“Não sei, uns vinte minutos. Escute, você está me ouvindo? Ela está morrendo! Vocês precisam fazer algo!”.
“Sim, senhora, estamos preparando uma ambulância agora mesmo. Você sabe me dizer o CPF dela e se ela tem seguro?”. Eles nunca vão chegar a tempo, pensei.
Passei as informações, conferindo-as com meu pai. Fiquei afobada, esperando alguma resposta do outro lado da linha enquanto eles averiguavam. Me deixaram aguardando por alguns segundos. Ou eram minutos? Não saberia dizer. Mas calculei na minha cabeça que, até eles verificarem as informações, prepararem a ambulância e dirigirem até minha casa, vovó já não teria mais chance. Que sistema péssimo. É a coisa mais brasileira que já vi, colocando a burocracia antes da vida de alguém.
É claro que, na hora, não me ocorreu que a atendente estava calma para tentar me manter sã, pois era isso o que lhe foi instruído. Ao perceber isso, me senti culpada; havia reclamado, incrédula, sobre sua insensibilidade para as duas pessoas que seguravam as mãos de minha vó. Como eu, a pobre moça só estava fazendo sua parte.
Depois de voltar à ligação, a atendente me confirmou que a ambulância estava a caminho.
Sentei no sofá da sala e tentei processar o que tinha acabado de acontecer. De dentro do quarto do meu pai, eu o ouvi falando suavemente palavras que não conseguia distinguir. Eu vi, junto com ele, ela parar de piscar, seu pulso perder ritmo e seu braço simplesmente cair a seu lado. Ele estava falando com uma pessoa morta. Tive uma ainda maior confirmação disso quando a cuidadora de vovó saiu do quarto para lhes dar privacidade. Ela, em seguida, foi para a cozinha, enquanto eu me curvei escondendo meu rosto nos joelhos.
Cobri meu rosto com minhas mãos para abafar o som. E, com um pingo de culpa, o deixei vir. E assim aconteceu o primeiro.
A segunda vez foi quando eles chegaram. Meu cachorro latiu ao ouvir o barulho da porta do elevador, e os três socorristas, que entraram uniformizados, carregando materiais que eu não reconheci, pararam no corredor.
“Ele morde?”, uma das mulheres perguntou, enquanto seu colega estava prestes a se abaixar para acarinhá-lo. Fiquei parada por um segundo, não acreditando na cena. Pisquei duas vezes.
“Minha vó está morta”, foi minha resposta. Meu rosto isento de expressão deve tê-los assustado, pois consegui que eles se recompusessem e se afastassem do cão.
“Ah. Certo. Onde ela está?”. Indiquei o caminho do quarto. Vi, então, um deles colocar uma pequena máquina em cima da cama, ao lado dela. Eles abriram sua blusa e vi a imagem bizarra de seus peitos flácidos derramando-se, um para cada lado. Seus olhos ainda estavam abertos para o céu. Um dos socorristas começou a massagem cardíaca enquanto o outro ligava o aparelho.
“Assistolia”, o primeiro disse. Eles colaram quatro eletrodos vindos da máquina em seu corpo murcho e enrugado. Quando ligaram o desfibrilador, eu levei um susto. Ele falava.
“Passo um: Verifique o pulso do paciente e se há obstrução nas vias aéreas. Passo dois…”.
Era um passo a passo do processo, dado pela própria maquininha. Um passo a passo de como trazer alguém de volta à vida. Mas espera… eles não fizeram anos de estudo para isso? Eles já não deviam saber, sem um objeto para guiá-los? Parecia bizarro demais para ser real.
“Espera”. Eu olhei para meu pai. Seu rosto parecia ter sido puxado para baixo com um anzol. “Eu não acho que ela ser ressuscitada é a melhor coisa a se fazer. Seus órgãos falharam, sua condição de vida era ruim”.
Meu pai assentiu com a cabeça e, em poucas palavras, confirmou o que eu disse.
Todos ficamos em silêncio. Pela primeira vez, percebi outra pessoa no cômodo. A cuidadora de minha vó, das últimas semanas. Ela estava chorando. Conhecia minha avó há duas semanas e estava chorando. O silêncio pesava, a não ser pela voz da maquininha, que estava, então, no passo cinco. Eventualmente ela chegou a um ciclo de repetição:
“Choque recomendado. Afaste-se do paciente. Aperte o botão laranja de choque agora… Choque recomendado. Afaste-se do paciente. Aperte o botão laranja de choque agora… Aperte o botão laranja de choque agora”.
“Não pode desligar isso aí?”. Foi a primeira vez que eu ouvi meu pai falar uma frase inteira.
“Precisamos esperar o médico chegar para que ele confirme que ela não deve ser ressuscitada”. O que meu cérebro perverso interpretou como para que ele confirme que a menina não quer assassiná-la.
A voz continuou com as instruções, dizendo, passo a passo, o que os paramédicos deveriam fazer. Parecia uma babá. Uma babá eletrônica. Meu Deus, essas seriam as pessoas encarregadas de salvar a vida dela se fosse o caso? Aí minhas bochechas, que estavam se enchendo de ar, cederam.
“Que patéticos”, consegui ouvir a voz de minha vó em minha cabeça. Vovó, que acreditava em gnomos, poderes místicos, pedras espirituais e tarô, mas podia ser cética em relação às pessoas. Eu conseguia imaginá-la de pé ali, saudável e falante. Com certeza estaria gargalhando.
“Olha a cara daquela ali. Até parece que é ela quem está morrendo. Meu Deus, alguém oferece um botox para a coitada, acho que ela nem sabe que tal coisa existe”. Observei a paramédica para qual o espírito imaginário apontava. Seu rosto era um mosaico de tédio, composto de um bico fechado e olhares distraídos pelo quarto. Me desculpando a todos, eu saí do cômodo.
Eu estava errada, ela ainda estava em assistolia. Havia uma chance, então. Pelo menos, uma janela de tempo em que talvez seu coração poderia voltar a bater caso o médico achasse viável.
Certas palavras que ela havia dito nos últimos anos, que passaram despercebidas, vieram à tona como um vendaval:
“Estou no lucro”, ela dizia tranquilamente se seu médico recomendasse uma dieta que a faria abandonar seus doces prediletos e ela, teimosamente, se recusava a seguir. “Já estou no lucro”, ela dizia alegremente se recomendavam algum exercício que ela tinha preguiça demais para fazer. “Estou no lucro”, ela dizia com uma paz de quem abraçava qualquer desafio.
Olhei em volta para as criaturas pitorescas, congeladas em volta da cama ao som de uma máquina irritante, sem saber quando deviam mexer um músculo ou pigarrear. Sem previsão de quanto tempo deviam ficar imóveis até o médico chegar. A cena anômala fez com que eu me dissociasse e lhe assistisse enquanto meus pés me carregavam para longe.
Ao sair do quarto, tentei abafar o som, sem muito sucesso. É possível que alguém tenha ouvido quando eu estava no corredor.
A terceira vez foi quando meu pai teve que sair, para lidar com as preparações do velório e da cremação. Eu não sabia se isso era um processo burocrático estratégico feito pelas empresas funerárias para deixar a mente ocupada ou se era apenas insensível. E assim eu me despedi de meu pai, que, após passar a madrugada inteira conversando com o geriatra e o cardiologista da vovó, que compareceram no apartamento, foi do cartório ao crematório durante a parte da manhã. Eu odiaria ter que lidar com isso.
Familiares chegaram. Uma amiga da vovó também. Cláudia, o nome dela. Usava brincos em formato de gotas, calças néon de ginástica e tinha 1,85 metro de altura, só não sendo mais alta que a própria voz. Ela soluçava, inclusive, era a única. Não que vovó não fosse adorada, ou o apartamento não estaria cheio, mas a reação foi tão intensa que preenchia o cômodo, silenciando os demais.
Mesmo assim, não parecia real para vários de nós. Minha prima não falou muito. Meu tio abraçava todos. Meu primo buscava água para as pessoas, para evitar falar do assunto. Mas Cláudia, com meu cachorro no colo, como se o conhecesse a vida toda, chorava aos prantos. Ela e minha vó eram bem próximas, apesar da diferença de 30 anos de idade. Cláudia era cunhada de meu tio e virou professora de ginástica da vovó. Mas claro que, em vez de fazerem exercícios, vovó a convencia a ir ao cinema ou sair para beber smoothies, e, assim, Cláudia ganhou uma amiga e vovó não se perdia em seus hábitos sedentários.
Estava conversando com minha prima quando Cláudia se levantou e, sem nenhum aviso, entrou no quarto onde vovó estava. Ela retornou uma hora e meia depois, com o rosto inchado de lágrimas, contando que queria deixá-la bonita para o velório. Então, percebi a bolsa aberta em sua mão, na qual estava visível um batom fechado e um pincel de maquiagem cheio e felpudo que se assemelhava ao rabo de um lulu-da-pomerânia. Se alguém averiguasse e abrisse a bolsa, provavelmente encontraria itens como pó compacto e paleta de sombras com tons parecidos com os que David Bowie usava.
E foi assim que concluí que ela havia maquiado e vestido vovó.
Achei algo estranho e horripilante de se fazer, mas não questionei. Meu pai, que já havia retornado, não parecia chateado ao ouvir do ato que ela estava compartilhando com orgulho, então eu não tinha motivo de estar.
Horas mais tarde, enquanto os parentes lidavam com as burocracias da certidão de óbito para que buscassem o corpo, eu decidi ficar em casa. Eu ainda estava de pijama e, apesar de ser a única vestida de forma mais casual possível, não achei nenhuma motivação real para me trocar. Afinal, ainda não tinha dormido. Umas quinze pessoas entraram e saíram até que eu estivesse sozinha. Com vovó.
Fui a meu quarto e tentei dormir. Liguei para minha irmã, que morava longe, e pedi para que me distraísse. Fritei na cama por meia hora. Considerei ir até a cozinha e pegar um petisco para comer, mas algo me segurou. Eu estava sozinha em casa com um defunto. Era difícil dizer que aquele defunto era minha vó, pois eu não acreditava nisso. Vovó falava, fazia piada, até brincou com o cabelo do médico na semana anterior. “Esse topete está péssimo”, havia dito, desnorteando um cômodo de parentes preocupados e os levando a risadas. O corpo ali não fazia nada disso. Consciente de que estava sozinha em casa, comecei a rir. Muito. Era a situação mais bizarra pela qual eu já havia passado.
Então, ouvi um barulho. Congelei no lugar, estremecida. Vinha do quarto onde vovó estava e parecia o de um objeto sendo arrastado. Esperei. Ouvi o som novamente. Ninguém havia chegado ainda, então lavei o rosto no banheiro. Minha mente está inventando coisas, pensei. Meus braços estavam arrepiados. Tomei um calmante e só acordei na hora do velório.
“Como você está, querida?”, minha tia me perguntou no evento. Eu estava longe do caixão aberto. A visão dele me deixava desconfortável. Os olhos dela estavam fechados agora, suas mãos estavam se sobrepondo. Havia flores brancas espalhadas no véu que a cobria. Seu rosto, entretanto, não combinava com a cena. Ela estava com uma sombra roxa e bochechas extremamente rosadas. Uma linha fina de batom vermelho cobria sua pequena boca. Ouvi meu pai conversando sobre a pintura com meus tios; todos estavam agradecidos pelo ato de carinho, o que me levou a manter uma cara de paisagem durante a cerimônia.
“Indo. Dormi mal. Comecei a ouvir coisas de noite, sabe como é… minha mente criando coisas”.
“Ah não, querida, foi minha irmã”, ela contou, com a maior naturalidade do mundo. “Pedimos para ela ficar, para não te deixar sozinha. Você não a viu?”.
Foi então que percebi que eu não vi a irmã da minha tia/amiga da minha vó/a pior maquiadora de defuntos da história sair da casa antes de eu acordar. Cláudia havia passado a noite com o corpo. Ela não queria deixar minha avó sozinha. Tentei processar isso, pois não estava crendo. Infelizmente, mais tarde, consegui a confirmação de minhas suspeitas. Pediram explicitamente para ela me fazer companhia, mas ela não quis deixar a vovó sozinha? Calma, recomponha-se. Aqui você precisa se recompor. Ela maquiou… vestiu… e dormiu… com a minha avó. Que está morta. Respira fundo.
Respirei cinco vezes e tentei me distrair do assunto. Olhei para o padre que estava falando. Eu não era religiosa, e sermões católicos sempre me deixaram desconfortável, mas tentei prestar atenção. Estava dando certo. Consegui me acalmar e focar nas palavras, e esqueci completamente do assunto.
Até que me arrependi profundamente.
“Estamos hoje aqui para honrar a memória de Helena…”.
Pronto. Tudo que bastava.
De pé, diante de família e amigos próximos, diante de pessoas vestidas de preto, tanto jovens quanto idosas, eu paguei o maior vexame dos meus 23 anos. Meu corpo tremia descontroladamente, como se pertencesse a uma minhoca convulsiva, e o som inicialmente abafado se transformou na minha garganta em algo maior do que a vida.
Dessa vez, não tive tempo de ir ao banheiro. Ri ali mesmo. Na frente dos familiares, do padre e da vovó com sua maquiagem tão chamativa quanto um pavão. Mas quem era eu para julgar, né, vó? Eu estava soando como uma araponga. Se riso era o melhor remédio, aquele com certeza era difícil de engolir. E, como se ela estivesse mais uma vez a meu lado, respondeu:
“É, minha filha. Mas pelo menos não te chamaram de Helena em vez de Heloísa no seu próprio velório”.
Antonia Leão é escritora e professora de inglês, nasceu em Curitiba em 3 de fevereiro de 1998. Graduou-se em Jornalismo pela Universidade Positivo e é cronista no jornal Plural. Teve contos publicadas pelo selo Off Flip e pelo jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná. Tem uma grande paixão por psicologia e pelas artes. Em seu tempo livre, gosta de criar receitas e brincar com seu cachorro Elvis.