Outra Cena #004 | De Sófocles a Adolfo Bioy Casares: a tragédia do desejo

LEIGHTON, Frederic. Antígona. 1882. 1 óleo sobre tela, 58,5 × 50 cm. Coleção particular.

De Sófocles a Adolfo Bioy Casares: a tragédia do desejo

O relacionamento íntimo entre os mitos – especialmente, os de origem grega – e a psicanálise não passa despercebido a nenhum leitor ou ouvinte que se interesse pelo assunto. Venho tratando disso, ou ao menos citando, em todos os textos escritos para a coluna até aqui, e a bibliografia disponível para aqueles que procuram é vasta. Mesmo sem entrar no mérito dos textos, os desdobramentos teóricos do Complexo de Édipo são, possivelmente, o aspecto mais conhecido do trabalho freudiano, junto com os sonhos e o conceito de inconsciente. O termo narcisismo, frequente no discurso oral e escrito de nossos tempos, é conceitualmente fundamental para a metapsicologia psicanalítica (e, é claro, difere do uso no senso comum) e remete diretamente à história de Narciso. Mas há, ainda, um nome menos associado à psicanálise, talvez por não ter sido falado em Freud, mas que assume papel fundamental na compreensão da proposta analítica.

Antígona. Filha do casamento incestuoso entre Jocasta e Édipo, irmã de Etéocles, Polinices e Ismênia. Sua história é a terceira da trilogia tebana. Após o exílio de Édipo, o poder de Tebas passa a residir nas mãos de Etéocles e Polinices. O combinado entre os irmãos era que revezariam o trono, substituindo o pai arruinado. Etéocles assume o cargo primeiro e, após o prazo de um ano, não cumpre o combinado de passar o poder ao irmão. Polinices, então, declara guerra à cidade de Tebas e ao rei, o que leva à morte de ambos os irmãos em combate. Ao reassumir o trono, Creonte decreta que apenas Etéocles poderia ser sepultado de acordo com a lei dos deuses, vetando o direito a Polinices por ser um traidor. Contrariada pela decisão de Creonte, Antígona decide tomar para si mesma a responsabilidade de cumprir as exéquias e sepultar seu irmão. Ismênia, temerosa das consequências, recusa ajuda à irmã. Após ser flagrada pelos guardas, Antígona é condenada e se suicida dentro de sua prisão.

Lacan toma a história de Antígona como objeto em seu Seminário 7, para fins de articulação sobre a ética da psicanálise: uma ética pautada pelo desejo, que encontra nos atos da personagem de Sófocles a representação de sua radicalidade. “Antígona é uma tragédia, e a tragédia está presente no primeiro plano de nossa experiência, a dos analistas”, começa Lacan. Mais adiante, refere-se a Antígona como uma “vítima tão terrivelmente voluntária”, estabelecendo que a marca firme de sua história, capaz de reter e interditar o leitor na mesma medida, é sua decisão de ir a quaisquer fins por seu próprio desejo. Isso implica uma proximidade significativa entre a raiz desejante e a morte, estando a função do desejo – no sentido da capacidade de desejar – situada em Antígona no intervalo entre estar viva e morta, ponto insustentável para o ser humano.

É assim também com Édipo, que, em alguma medida, não abre mão de seu desejo de saber, esforçando-se para encontrar o assassino de Laio – mesmo frente ao apelo de Jocasta para que abandone a busca – traçando o caminho de um destino inescapável. Assim, o desejo a que se refere a ética proposta por Lacan não está no campo da necessidade e só é passível de conceitualização a partir da proximidade com o além do princípio do prazer, referido por Freud em sua elaboração da pulsão de morte.

Para ir adiante, arrastando o conflito de Antígona para a contemporaneidade, empresto considerações feitas por mim em outro lugar – com propósitos mais formais – sobre A invenção de Morel, de Bioy Casares. A obra do escritor argentino, em seus laços com a literatura fantástica, é também um relato de um desejo, primeiro fundado na ausência e depois arrastado para a morte.

“Ontem à noite, pela centésima vez, adormeci nessa ilha vazia”, diz o narrador, antes de se deparar pela primeira vez com um grande número de visitantes desconhecidos na ilha, anteriormente abandonada, onde estava se refugiando. Com a declaração de que se descobre não mais sozinho, passa a olhar com medo e curiosidade para o local e seus novos moradores. Começam suas observações infindáveis dos acontecimentos, formulando suas hipóteses para aquelas presenças, mas principalmente para o fato de que, em suas tentativas frívolas de fazer contato com uma das moças presentes – e por quem desenvolve uma paixão –, parece não ter sua existência notada. Depois de muito investigar, descobre a origem daquelas pessoas e do lugar tão misterioso: Morel, inventor e organizador do grupo ali presente, assume ter criado uma máquina capaz de captar cada movimento do ambiente e dos indivíduos: as plantas, o Sol, a temperatura, os diálogos e a permanência de objetos.

Ao julgar a ilha o local perfeito para o uso da invenção, constrói as estruturas de um museu, uma igreja e uma piscina. Convida, então, seus amigos para passar uma semana nesse paraíso recém-feito, sem lhes contar qualquer coisa sobre seus propósitos. Assim, a máquina grava repetidamente todos os elementos fundamentais do ambiente e os acontecimentos da semana. No entanto, a consequência da captura seria a morte para todos aqueles que fossem transpostos em imagem. Para Morel, esse detalhe indicava a prova de que sua invenção era capaz de capturar também a alma de quem ali estivesse. O narrador torna-se obcecado pelas imagens, especialmente por Faustine. Assiste às interações por semanas, tentando decorar as falas e se colocar nas cenas como participante. Seu objetivo é, ciente da consequência do uso da máquina, gravar-se em meio às gravações já existentes para viver junto dos simulacros.

Em suas peripécias para convocar a atenção de sua amada Faustine, o narrador colhe flores e as organiza em letras, com fins de formular uma mensagem escrita. Em seu processo de construção, passa por duas frases: “Minha morte nesta ilha desvelaste” e “Um morto nesta ilha desvelaste”. Embora conclua sua criação com outra, dita mais desanimada por medo de desaprovação, suas considerações não parecem isoladas da questão do desejo como posta em Antígona: o que, afinal, caminha nas bordas da morte e da vida? E o que quer com isso o sujeito, a quem dirige a si mesmo?

Para a segunda pergunta, seria necessário ir adiante no pensar do desejo como desejo do Outro, como elemento fundamental à constituição imaginária e simbólica do sujeito. Não farei isso aqui, mas parece relevante perceber em A invenção de Morel uma associação clara não somente entre desejo e morte, mas também entre desejo e imagem, desejo e fantasia. Ainda que seja impossível traduzir plenamente para a vida o motor do desejo – que não se amarra em um objeto fixo –, a fantasia aparece como uma das formas mais íntimas de representação.

Eis o que a máquina propõe: a transmissão de certos aspectos concretos da vida humana – os sons, o tato, o visual, as palavras ditas e as ações praticadas – para uma versão projetada, imagética dos indivíduos, de modo a eternizá-los em um momento agradável, ou, ao menos, de conexão entre o grupo. A questão que se impõe é, portanto, a do preço da equivalência. Só é possível para os indivíduos estarem em pé de igualdade, plenamente equivalentes à imagem dos momentos de alegria e prazer, se pagarem com a vida. Isto é, traduzir plenamente o desejo na fantasia o encerraria e, como dito por Lacan, apenas a morte é capaz de encerrar o desejo.

O movimento do narrador, ao assistir repetidamente às imagens e montar seu próprio roteiro, marca a função desejante bem no ponto entre a vida e a morte decidida, assim como em Antígona. O exilado sem nome de Casares junta-se às tragédias de Édipo e sua filha: não cedem, não abrem mão do desejo. Onde há tragédia, no sentido dos mitos, há também lugar para algum entendimento acerca da proposta ética da psicanálise.

Isabela Cim é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como psicanalista na clínica, buscando elaborar o trabalho a partir da ética psicanalítica e de suas intersecções com temáticas de Direitos Humanos, como questões migratórias e de gênero. Além da formação continuada em psicanálise, segue com os estudos nas Letras no campo da Tradução.