Outra Cena #002 | Escutas e gramáticas

Ilustração de convite para exposição de Matisse no MoMA
Convite para exposição de Henri Matisse no Museum of Modern Art, em Nova Iorque, 1951

Escutas e gramáticas

Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), Mia Couto apresenta ao leitor a perspectiva de Mariano, um estudante que retorna à sua terra na ilha de Luar-do-Chão para acompanhar o funeral de seu avô e reencontrar-se com suas origens familiares. No primeiro capítulo, a bordo de um barco que o leva em direção à sua antiga casa, conhece Miserinha, uma espécie de sibila que observa e oferece breves profecias. Após se apresentar ao rapaz, a velha mulher dirige seus olhos para o tio que o acompanha.

“De novo, sua atenção pousa no Tio”, diz o narrador. “Seu olhar parece mais um modo de escutar.” Essa última frase, além de tocante e sensível, serve de epígrafe para abrir a questão motivadora desta coluna:

O que faz de uma escuta uma escuta? O que isso tem a ver com o olhar?

Para elaborar esses pontos de interrogação, seguirei dois caminhos. Primeiro, pela via da psicanálise. Há um desenho de senso comum sobre o tratamento clínico psicanalítico que consiste em três partes: um paciente, um sintoma ou sofrimento disparador e um analista. De fato, não há trabalho possível sem um desses três elementos, com a possível flexibilização do que se reconhece por sofrimento ou sintoma disparador. No entanto, dizer que todos estão presentes não garante a execução de uma análise de fato, nem sequer garante que ali se faz uma escuta clínica.

Os critérios para definir o início de uma análise, ou mesmo a possibilidade de que ela ocorra, são mais complicados e não serão aprofundados aqui. Para que a escuta do inconsciente entre em cena, por sua vez, é preciso que o analista anuncie, direta ou indiretamente, a regra básica da associação livre. Esse é o início da escuta da histeria no século XIX e também o início de cada novo analisando até hoje: o pedido de que o paciente diga todo o possível sobre seu sofrimento, suas angústias e, de modo geral, sua história, sem que haja a necessidade de uma linearidade, dizendo aquilo que vem ao pensamento em fluxo “livre”. Uso as aspas pois, ao contrário do que pensaram os surrealistas apaixonados por Freud, não há fala plena sem resistência.

Estabelecida a associação livre, em diversos graus, a questão torna ao analista. Como escutar? Para a teoria psicanalítica, por muito tempo, o termo interpretação foi o mais utilizado para descrever o trabalho do analista, que escuta aquilo que o paciente diz sem o dizer completamente e devolve o que ouviu pela via interpretativa. Assim como no campo da crítica literária, essa terminologia impôs questões. Esse é um dos aspectos retomados por Freud em seus textos no fim da vida, quando, em meio ao desenvolvimento intenso do fascismo na Europa, migrou de Viena para Londres e passou a olhar para seu trabalho teórico na psicanálise com o objetivo de organizá-lo melhor. Assim nasceram diversos textos, entre 1937 e 1939, com caráter de compêndio. Nesse cenário, escreveu e publicou Construções em análise (1937) como uma consideração acerca da função do trabalho analítico diante dos conteúdos oferecidos pelos pacientes, expondo as diferenças entre os conceitos de interpretação e construção. Uma das perguntas derivadas dessa articulação gira em torno da função do analista, elaborada por Freud por meio de uma analogia com a operação de um arqueólogo, na medida em que o analista deve auxiliar na (re)construção das memórias perdidas, organizando e coletando novos materiais e conteúdos. Aponta, ainda, que há uma diferença significativa entre os materiais analíticos e os materiais permanentemente fragmentados dos arqueólogos. Para a psicanálise, o conteúdo psíquico nunca é destruído, apenas mantido velado.

Preencher o espaço da pré-história com possíveis construções, no entanto, não é um fim em si mesmo, especialmente porque, ainda que seja possível estabelecer sentidos e significados para as reminiscências psíquicas, não há um único fio narrativo consistente e passível de uma interpretação ou construção final. Além disso, a função de um trabalho analítico não é o de inventariar a vida. A diferença entre fato histórico e verdade subjetiva faz com que isso seja inviável. Embora exista um nível de verdade histórica recuperada, o que entra em jogo é a reconstrução a partir da posição psíquica do indivíduo. O conceito de construção, portanto, já agrega um pouco mais à ideia de que a escuta não se encontra nunca balizada pelo encontro de respostas ou por uma resolução de conflito plena.

Porém, a pergunta sobre o fundamento da escuta permanece, pois elaborar suas consequências a partir das intervenções feitas ao analisando não diz totalmente do ato de escutar em si. Pensando pela via da ideia do inconsciente como uma ordem sociossimbólica, como propõe Lacan, é possível dizer que a escuta analítica é a escuta de uma gramática. Não se escuta o conteúdo, e sim a sua estrutura e a organização privada de cada sujeito. Uma gramática particular, pautada por uma gramática social e simbólica “comum” – ou seja, apresenta ao indivíduo pelo Outro –, mas significada individualmente. Isso significa dizer, como lembra Vladimir Safatle, em Introdução a Jacques Lacan (2017), que não há um manual ou dicionário pronto para ditar o significado dos sonhos, dos atos falhos e dos sintomas. Assim, escutar passa por sustentar um espaço em que seja possível descobrir de que maneira o sujeito constrói seus significados, associa, condensa e desloca aquilo que sabe sobre suas posições psíquicas e seu desejo.

Se o trabalho da escuta analítica acontece à medida que o analisando se propõe a ser escutado – e a escutar-se em retorno –, o mesmo não pode ser dito sobre o texto literário. Diante de uma intervenção fraca ou errônea, um indivíduo em análise pode dizer “não, não se trata disso” e forjar um novo caminho. Um texto escrito não retruca em voz alta, algo que torna o processo um tanto mais complicado. Assim como Freud identificou as diferenças entre interpretação e construção considerando as diferentes etapas (ainda que não lineares) do trabalho, é possível pensar a tarefa dos estudos literários como separada em etapas. É essa a proposta de Davi Arrigucci em entrevista publicada na Revista Brasileira de Psicanálise. A primeira etapa, de explicação, consiste em algo muito parecido com a interpretação comum, pensando os elementos da obra literária perante referenciais externos, sejam culturais, sejam linguísticos, sejam históricos, entre outras interdisciplinaridades. Esse momento inicial de tradução dos signos textuais em outros conteúdos consiste em um preâmbulo, e não na atividade principal de leitura. A etapa de compreensão, por sua vez, consiste na tentativa de escutar a estrutura significativa da obra, sustentando inclusive seus pontos de falta.

Assim como na analogia arqueológica proposta por Freud, o momento inicial, ainda que fundamental para o trabalho, tem seus limites. Segundo Arrigucci, a tarefa crítica deve explicar apenas o que é explicável, sendo justamente o que escapa ao exercício inicial o miolo mais fundamental da compreensão e, portanto, da atividade interpretativa como um todo. Os limites da interpretação, nesse sentido, residem também na proposta de que o objeto da crítica permanece em seu íntimo enigmático, de modo que a função propriamente dita do trabalho crítico não é responder a perguntas que esclarecem a obra, mas explicitar seus pontos de indissolubilidade. O encontro do leitor e intérprete deve ser, dentro do possível e antes de tudo, direto com o texto, como em uma escuta analítica, sem uma carga predeterminada de significados pressupostos. A crítica literária está, então, no ramo das possibilidades de sentido, sem nunca se entregar a ele – como um elemento vivo que sempre se renova. Essa ideia se alinha também com o que propõe Susan Sontag, em Contra a interpretação (1966), ao pontuar que uma obra de arte, literária ou não, é uma experiência, e não um objeto que responde a uma pergunta ou que diz algo sobre o mundo. Reduzir uma obra literária a interpretações explicativas é fazer calar a gramática – no sentido utilizado por Lacan – do próprio texto.

Não à toa, a tarefa da escuta analítica e da escuta de um texto é árdua e, por vezes, capturada pela demanda (humana, capitalista, contemporânea?) de dizer algo, de esgotar questões. Por isso, a frase que deu início a estas reflexões se fez tão importante: um olhar que se parece com um modo de escuta é um olhar que não preenche o espaço, que sustenta o intervalo entre o dito e o não dito, que permite que a escuta seja uma experiência, assim como a própria fala. Um olhar que parece um modo de escutar é um convite – um convite aos diversos nós de significação da vida, mas também um convite a sustentar os pontos em que não haverá palavra possível.

É essa a esperança de uma análise e parece-me ser essa também a esperança do trabalho com a arte.

Isabela Cim é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Letras – Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como psicanalista na clínica, buscando elaborar o trabalho a partir da ética psicanalítica e de suas intersecções com temáticas de Direitos Humanos, como questões migratórias e de gênero. Além da formação continuada em psicanálise, segue com os estudos nas Letras no campo da Tradução.