Uma carta a Nara

Assionara Souza despediu-se deste mundo no dia 21 de maio de 2018, há exatos quatro anos. Cerca de um mês antes, um e-mail de Silvana Guimarães, editora da Germina: Revista de Literatura e Arte e amiga generosa de tantos escritores, chegou até mim com o original de Instruções para morder a palavra pássaro

Na época, eu era uma (ainda mais) jovem editora que concluía a graduação em Jornalismo. Por mais que soubesse do estágio avançado da doença, a notícia de que Assionara não estaria mais aqui me atingiu como uma vertigem. Acho que ninguém estava preparado para ver mais uma morte precoce, dessas que nos fazem sempre lamentar pela brevidade da vida e, ao mesmo tempo, celebrar pelo lampejo de sua passagem.

Conheci Nara antes como professora, quando eu tinha dezesseis anos. No fim de uma aula, lembro-me de perguntar se ela também escrevia, a que ela me respondeu simplesmente: “Não, só dou aula”. Acho que só fui entender a força dessa mentira anos mais tarde, quando me tornei a editora de seu primeiro livro de poesia, Alquimista na chuva (2017). Durante todo o nosso convívio, em meio a risos e segredos, ela me ensinou a ler, a escrever e a olhar bem para os livros.

Instruções para morder a palavra pássaro chega de fininho para situar o leitor de uma produção viva, que não se esgota, cujos poemas podem ser saboreados a esmo, num suspiro desprevenido. Nós, da Telaranha, colocamos todos os nossos esforços para que essa primeira publicação guarde também os afetos envolvidos no percurso de Assionara Souza.

Assionara Souza, 2015. Foto: Bárbara Tanaka

Assionara Souza em depoimento a Bárbara Tanaka, setembro de 2015

Quando eu escrevo, eu imagino o cenário daqui, como ele se movimenta. Eu não nomeio muito, mas crio um mapa mental da cidade que é muito subjetivo. Vou seguir dependendo do que chama a atenção de cada personagem, do que ele experimenta olhar.

Eu tenho um personagem em um conto do livro Amanhã. Com sorvete! que é a personificação da cidade de Curitiba. Inclusive, eu até coloquei uma epígrafe do Dalton Trevisan: “O futuro, outra rua de Curitiba”. Eu escrevi em 2008, quando ainda não existiam localizadores da tecnologia, e o protagonista ficava procurando e especulando sobre onde uma outra personagem estaria. Aí eu usei Bairro Alto, cheio de morros e ladeiras, usei o Centro, o Batel. Esses lugares da cidade… Em vez de eu colocar o nome, eu coloquei siglas, tipo BA.

E Curitiba é uma cidade que, porra, você tem o Oil Man. A Rua XV de Novembro é uma loucura, né? Experimenta colocar Rachmaninoff e atravessar a Rua XV. Você cria uma sonoplastia para aquele percurso, você olha para as pessoas e elas estão numa espécie de plot. Hoje eu estava com uma amiga almoçando em um lugar e falei para ela: “Olha, esse garçom saiu de um conto do Dalton Trevisan”. No momento que o autor mapeia e cria personagens que estão soltos na cidade, você reconhece esses personagens na cidade.

Os lugares são carregados dessa vida pessoal, dessa memória. Talvez seja o espírito dos livros. Você carrega emoção em todo lugar que você passa. Eu lembro quando uma vez eu beijei um cara ali perto do bebedouro do cavalo babão de madrugada. A gente andou da Federal até lá e o tempo inteiro fui pensando “pô, não vai me beijar nunca?”. A gente parava e eu ficava esperando; mas aí ele me beijou no cavalo babão. Eu acho que era porque tinha muita água ali, sede… Aí ele me beijou. E a gente namorou. E sempre que eu passo ali eu penso, né, que lugar estúpido onde eu dei aquele beijo…

Mas é bom escrever sobre Curitiba e marcar esse território na literatura porque isso sempre foi uma questão da história literária brasileira. Se a gente marcar esse território paranaense, curitibano, você tem um reconhecimento do leitor desse território literário. Você tem uma expectativa muito boa; já viu Curitiba no cinema? É aquele sentimento de “olha lá!”.

Eu tenho um olhar para Curitiba que mistura a coisa de não ser o meu lugar. Por mais que eu more aqui há muito tempo, eu vim de uma cidade do Nordeste com 8 anos; ainda que eu sempre visite lá. E é incrível como Curitiba tem uma recepção no Brasil todo como uma cidade que é perfeita. O que o escritor quer é desfazer isso — não por maldade, mas por crueldade mesmo. Quer desfazer essa coisa de Curitiba ser uma cidade perfeita. Ela não é. É uma casca que, quando você tira, se mostra cruel como toda cidade. E Curitiba se pretende única, se pretende previsível. O tempo todo Curitiba quer ser previsível.

E, por esse motivo, eu acho a literatura meio covarde: ela produz essas coisas bonitas a partir de um lugar que não é. É como se fosse uma assimilação, um filtro de beleza que não aconteceu, onde tudo fica retido no sujeito e só aí ele se expressa. Você não pode represar a beleza.